Nada é exatamente como percebemos. Cada um de nós enxerga a partir de
lentes embaçadas, mentes condicionadas por tantas impressões, tantos
vetores que não nos damos conta.
Você só conhece uma versão. Olha por uma única fresta e pensa que viu
tudo. Sente-se seguro por acreditar que sabe. Pensar que sabe lhe deixa
seguro.
A ciência pensa que sabe, a filosofia imagina ter chegado à algum lugar, a teologia orgulha-se sem saber que não sabe.
A maioria de nós se apegou às próprias certezas e a partir delas
construiu castelos imaginários que o tempo, as perdas, as dores, os
imprevistos da vida podem facilmente destruir. Tememos a desilusão.
Enxergar desilude.
E então vivemos como quem se esforça para acreditar que tudo será
como parece , que os castelos serão inabaláveis, que as coisas farão
sentido conforme a lente embaçada e a vida será sempre mar tranquilo,
como se todas as possibilidades, todas as variáveis, todos os caminhos
coubessem na caixinha de fósforo que vivo, no grãozinho de arroz que
sou.
Mas essa é só uma parte da história. É a parte inquietante, pelo
menos sob a perspectiva da mente que se esforça para assumir o controle,
que projeta sobre o ego a incumbência de assumir-se como ente, como ser
que não é.
Até que não reste alternativa a não ser enxergar a própria
ignorância. Desconstruir-se é assumir-se como é, reconhecer as
incompletudes, sem disfarces, sem camuflagem, sem medo.
Nada é exatamente como percebemos.
A vida inteira se movimenta para nos mostrar que toda perspectiva
absoluta é reducionista e nos livrar da tendência tão arraigada de nos
identificarmos com a imagem do espelho, a superfície dos acontecimentos,
a sensação de controle.
É preciso coragem para soltar as muletas e caminhar sem escorar-se em
nada. Calar a mente, pacificar-se exatamente por saber que a inquietude
é improdutiva, as construções mentais ilusórias, o sentimento de posse
passageiro, a sensação de poder enganosa.
Você só vê pela fechadura, não sabe quase nada, portanto, que o sentimento diante da vida seja de reverência.
Que haja silêncio e pacificação suficientes para entender os sinais
sem ficar se debatendo, conectar os movimentos sem reclamação, perceber
que em cada acontecimento, por menor que seja, existem bilhões de
possibilidades, todas com potencial para aprofundar sua consciência, mas
você só percebe uma, talvez duas, quem sabe três, nada além.
Aquiete-se.
Você está vivo, experimentando agora a condição de ser-humano e isso já é mais do que pode entender.
Se não sabemos quase nada, sejamos humildes e simples de coração,
abertos o suficiente, atentos ao universo que nos cerca, que nos habita,
que se projeta no caminho e, sobretudo, gratos pelo espantoso e
inexplicável fato de existimos.
Por que você se inquieta por tão pouco? Ainda que a vida seja um
completo mistério, estar aqui já é um enorme privilégio. Para mim, isso
já é mais do que posso conceber.
Flavio Siqueira