Agora, exatamente nesse instante, uma ave pousa sobre as pedras,
para um tempo, um ou dois minutos no máximo, olha o mar revolto, o céu e
voa.
Em algum canto do norte do México um Coiote observa uma presa com
cuidado. Ele se movimenta lentamente para não espantá-la até que, de
repente, avança.
Há um menino que desistiu do que estava fazendo para prestar atenção em um inseto que escala uma folha com certa dificuldade.
Ele está no jardim da casa do avô que entrou apressadamente para não sei
o que. O menino sorri, o inseto se esforça, o menino estica o dedinho
para ajudar, o bichinho se assusta e voa, o menino se assusta e corre. O
avô também corre assustado.
Longe dali, sobre uma arvore de eucaliptos em algum lugar da
Austrália um Coala prossegue no sono que durava horas. Um intenso sopro
de vento agita as folhas, um raio anuncia o temporal, ele acorda, se
mexe, se ajeita mas não sai do lugar. O vento continua, a chuva está
mais perto, o Coala dormiu de novo.
Enquanto isso, olhos alheios as realidades que o cerca passeiam entre
letras organizadas em um texto. Lê e ignora os processos de fora e os
de dentro. O mundo dos entes, o mundo biológico que lhe habita, o
universo de percepções que é.
Em algum canto do que chamamos de mundo há uma menina desiludida, um
cara orgulhoso, uma senhora cansada, um adolescente entediado, um homem
que não sabe, mas ainda hoje saberá, que a dor de cabeça dos últimos
dias é mais do que uma dor de cabeça. Antes que o dia termine ele
voltará para casa.
Nosso tempo no tempo, o espaço que ocupamos na relatividade não
contempla o universo que nos vincula. Mal sabemos o que somos. Vivemos
como se fossemos consciências solitárias, desconectados, dependentes da
boa sorte ou do bom comportamento, de premiações, gratificações
meritórias, golpes de sorte que abrem caminho para este ou aquele.
Desconsideramos que agora, nesse fragmento de tempo, exatamente nesse
instante, estamos vinculados a tudo o que respira, a tudo o que existe,
a tudo o que é. A realidade das aves, dos coiotes, dos meninos, dos
avôs, dos insetos, da vida que acontece o tempo todo, sem que eu veja,
sem que eu saiba, sem que eu sinta.
Vivemos sem noção de que o universo nos habita. O mar que bate nas
pedras ecoa em algum lugar dentro de mim, há coiotes caminhando em minha
alma, choro de meninos, passos de avô, insetos que voam aqui dentro
porque sei que de alguma maneira também estamos conectados, a menina
desiludida, o cara orgulhoso, a senhora cansada, o adolescente entediado
e o homem que voltará para casa.
Um dia todos voltaremos. Enquanto isso, vivamos como se todas as
coisas existissem de alguma maneira em nós. Elas existem.Gratos por
pisar em chão sagrado, compartilhando uns com os outros o privilégio de
ser casa de Deus, vivos, vidas que se tocam mesmo quando não se
conhecem, vinculados mesmo enquanto se sentem sós.
Há muitos mundos acontecendo nesse instante. Há muitas realidades,
infinitas conexões que você não vê, não sabe, não sente, mas ainda assim
lhe tocam, portanto, cale-se, aquiete-se, ouça, sinta com reverencia.
O avô que estava correndo chegou no menino assustado e o abraça. O
inseto voou para longe e não viu que que tudo ficou bem. Foi o que
pensou a esposa que vela o corpo do marido. Ele voltou para casa. O
choro sempre passa, os sustos são apenas sustos, um dia todos seremos
um.
Flavio Siqueira
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