Enquanto você lê esse texto há um homem dentro de um carro, ele passou há pouco por ai, a mente dá voltas em um problema que não consegue solucionar. O farol fechou, ele parou o carro, deu um suspiro e aproveitou para relaxar e pensar.
Ele não viu o hospital logo na esquina. Arrancou e sumiu no horizonte deixando o mundo para trás, inclusive o hospital, onde, em um dos quartos, uma senhora observa o marido sedado, em coma, depois de um inesperado AVC. A filha passou a noite inteira com ela e faz alguns minutos que saiu para resolver algumas questões em casa, tomar um banho e se preparar para voltar mais tarde. A senhora levanta da cadeira devagar, estica o corpo e caminha até a janela. Observa a vida pulsando lá embaixo, tudo como antes, ninguém mudou a rotina por conta do problema que agora lhe sobrecarrega.
Na frente do hospital um prédio, no segundo andar uma mulher ajudando o filho a vestir o uniforme da escola. A senhora observa pela janela do leito do marido, suspira com nostalgia e se permite, mesmo que por breves segundos, lembrar de quando a vida era assim. Do outro lado da rua mãe e filho sairão daqui à pouco, ele para escola, ela para o trabalho, com pressa, dirigindo, acabando de se arrumar no carro, distraída, sem notar um casal de adolescentes que atravessa de mãos dadas na faixa de pedestres.
É a primeira vez que tiveram coragem para segurar a mão do outro, ele, apaixonado, não sabe o que dizer, o coração disparado, a boca seca, ela, não sabe o que sente, mas gosta do jeito tímido do rapaz, ele é bonito, parece que vale a pena. Eles caminham até a banca de jornal, ela escolhe uma revista, mostra alguma coisa na página e os dois dão risadas seguindo adiante.
O jornaleiro guarda o troco, tosse enquanto ajeita uma pilha de jornais e retorna para trás do balcão a espera de que o movimento hoje seja bom. Ele cuida da banca, pensa no dia, ajeita a gola da camisa enquanto o próximo cliente não vem.
Para o jornaleiro aquela é a única vida que conhece. Ele não sabe sobre o homem preocupado no carro, nem a senhora inquieta pela recuperação do marido no hospital, a mulher que leva o filho para escola, o casal de adolescentes recém namorados que acaba de sair de sua banca, ele, o jornaleiro, não tem ideia que você está lendo esse texto, nem sabe seu nome, nem conhece sua história, nem a minha, nem a de ninguém que não esteja ligado à seu mundo, seu pequeno mundo, seu mundinho de jornaleiro.
Assim como você que não enxerga nada além do mundinho que cria, da esfera que vive, dos temas que elege e permite que ocupem sua mente o tempo todo. Enquanto lê esse texto que está quase terminando teve a chance de pensar que há mundos se cruzando o tempo todo, que estão todos conectados de alguma maneira, que há muito mais para ver do que seus limites impõe, uma vida, várias vidas, chances de ir e vir, escolhas a fazer, universos em movimento cruzando sua vida, seu caminho, seu espaço e você nem vê, enquanto lê esse texto.
Flavio Siqueira
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