segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

A sua cura começa com a sua fala


1 Depois , Jó abriu a boca e amaldiçoou o dia de seu nascimento. 
2 Assim falou:
3 “Pereça o dia em que nasci, e a noite em que anunciaram: ‘Nasceu um menino!’
4 Esse dia, que se torne em trevas; Deus, do alto, não se lembre dele, e sobre ele não brilhe a luz! 5 Que o obscureçam as trevas e a sombra da morte! Que a escuridão o domine, e seja envolvido pela amargura!
6 Aquela noite… um tenebroso redemoinho a arrase, e não se conte entre os dias do ano, nem se enumere entre os meses!
7 Que essa noite fique estéril e não seja digna de louvor.
8 Que a amaldiçoem os que amaldiçoam o dia, os que estão prontos para despertar Leviatã!
9 Que se obscureçam as estrelas do seu crepúsculo. Essa noite espere pela luz – e a luz não venha, ela não veja as pálpebras da aurora.
10 Pois não fechou a porta do ventre que me trouxe, e não escondeu dos meus olhos tantos males!
11 Por que não morri no ventre materno, ou não expirei logo ao sair das entranhas?
12 Por que em dois joelhos fui acolhido e em dois peitos, amamentado? 13 Pois agora, dormindo, eu estaria calado e repousaria no meu sono, 14 com os reis e governadores da terra, que constroem para si mausoléus, 15 ou com os nobres, que possuem ouro e enchem de prata suas casas. 16 Ou, como um aborto ocultado, eu não existiria, ou como os que, concebidos, nem chegaram a ver a luz. 17 Ali acaba o tumulto dos ímpios, ali repousam os que esgotaram as forças. 18 E os que haviam sido prisioneiros não são mais molestados, nem ouvem a voz do capataz. 19 Ali estão pequenos e grandes, e o escravo está livre do seu senhor. 20 Por que foi dada a luz a um infeliz e a vida, àqueles que têm a alma amargurada? 21 Eles aguardam a morte e ela não vem, e até escavam, procurando-a mais que a um tesouro: 22 eles se alegrariam intensamente, e ficariam muito felizes diante do sepulcro. 23 Por que, então, dar à luz alguém cujo caminho está oculto e a quem Deus cercou de trevas? 24 Em vez de comer, fico suspirando e o meu rugido é como águas de enxurrada. 25 O que eu mais temia, aconteceu comigo; o que eu receava, me atingiu. 26 Não dissimulo, não me calo, não me aquieto: a ira de Deus veio sobre mim!”

Comentário

1. Ao amaldiçoar o seu nascimento e ao lamentar a sua miséria (3:1 e seguintes), Jó fala do que sente, sem a preocupação de filtrar os sentimentos, nem de dizer apenas o que era teológica ou socialmente conveniente. Este é o momento da sua catarse, que de acordo com a psicanálise, consiste na exteriorização verbal, dramática e emocional da dor. Aqui vemos o homem Jó na plenitude da sua humanidade e da sua humilhação. 
2. Jó parece ficar perplexo e confuso acerca de Deus, pela primeira vez na sua vida. Ele sabe que Deus existe, mas não entende o que está a acontecer. Deus é um mistério, porque está envolto em neblina.  

Ludgero Coelho

Ainda continuas na tua integridade?


1 Num outro dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se novamente ao Senhor, entre eles veio também Satanás.
2 O Senhor perguntou a Satanás: “De onde vens?” Ele respondeu: “Acabo de dar umas voltas pela terra”.
3 O Senhor disse a Satanás: “Reparaste no meu servo Jó? Na terra não há outro igual: é um homem íntegro e reto, que teme a Deus e se mantém afastado do mal. Ele persevera em sua integridade. Tu, porém, me atiçaste contra ele, para eu o afligir sem motivo”.
4 Satanás respondeu ao Senhor: “Pele por pele! Para salvar a vida, o homem dá tudo o que tem.
5 Mas estende a tua mão e fere-o na carne e nos ossos, e então verás se ele não vai maldizer-te na cara!”
6 –“Pois bem, disse o Senhor a Satanás, faze o que quiseres com ele. Somente poupa-lhe a vida”.
7 Satanás saiu da presença do Senhor e feriu Jó com chagas malignas, desde a planta dos pés até o alto da cabeça.
8 Então Jó, sentado no meio do lixo, raspava o pus com um caco de telha.
9 Foi quando sua mulher lhe disse: “Ainda continuas na tua integridade? Amaldiçoa a Deus e morre de uma vez!”
10 Ele respondeu: “Falas como uma insensata. Se recebemos de Deus os bens, não deveríamos receber também os males?” E apesar de tudo, Jó não pecou com seus lábios.
11 CHEGADA DOS TRÊS AMIGOS
Ora, três amigos de Jó ficaram sabendo de todas as desgraças que o tinham afligido e vieram, cada um do seu lugar. Eram eles: Elifaz de Temã, Bildade de Suás e Zofar de Naamat, os quais combinaram vir juntos para visitá-lo e trazer-lhe consolo.
12 Quando levantaram os olhos, a certa distância, custaram a reconhecê-lo. Em alta voz começaram a chorar, rasgaram suas vestes e lançaram poeira para o céu, sobre as cabeças.
13 Sentaram-se no chão ao lado dele por sete dias e sete noites, sem dizer-lhe palavra, pois viam como era atroz a sua dor.

Comentário:

1. Jó perdeu os filhos, os milhares de animais que possuía, os bens materiais que constituíam a sua riqueza, a saúde e …perdeu também a apoio da mulher (2:9). Eis algumas teorias explicativas da reação da mulher de Jó: 
· Ela não era feita da mesma fibra do marido. A sua fé estava nas coisas. 
· Conhecendo o marido como conhecia, achava que Deus tinha sido injusto para com ele. A sua desilusão era imensa. 
· Quando as pessoas estão em estado de choque, podem dizer coisas que nunca diriam numa situação normal. 
· Ao ver o marido naquele sofrimento, talvez preferisse que Deus o levasse do que deixá-lo sofrer assim. No seu amor pelo marido, preferia perde-lo, do que tê-lo em tão grande sofrimento. 
· Precisamos de tentar colocar-nos no seu lugar para a compreender. 
2. Ao rejeitar a sugestão da mulher, Jó reafirma a sua fidelidade ao Senhor e passa no segundo teste (2:10). 
3. Os três amigos de Jó vieram com dois propósitos: Para condoer-se dele e consolá-lo (2:11). Condoer, significa doer com o outro, isto é, sentir empatia.
4. Os amigos de Jó não vinham preparados para o choque de ver o amigo transformado num farrapo humano, por isso “…não o conhecendo, levantaram a voz e choraram…” (2:12) 8. Os amigos de Jó depressa reconheceram a sua incapacidade para o consolar e por isso durante 7 dias e 7 noites permaneceram em silêncio, “…porque a dor era muito grande” (2:13). Esta foi uma atitude louvável, distinta daqueles que têm sempre respostas para tudo e que dominam bem a arte de espiritualizar. O silêncio significa respeito pela dor. Uma dor que não era apenas física, mas sobretudo uma dor interior: a dor da alma.

Ludgero Coelho