sábado, 11 de outubro de 2014

A coisa que somos


Vamos falar sobre você. Você quem? Saramago dizia que dentro da gente há uma “coisa” que ninguém sabe o nome, e essa “coisa” somos nós. Você é essa “coisa”. Não é o corpo, não é o rosto, não é a voz. Você não é aquele que os amigos reconhecem, tampouco o filho abraçado pelos pais. Você também não é o pai, nem a mãe.
Que tipo de “coisa” anima os corpos, esquenta a pele, põe brilho nos olhos, sorri, chora, pensa, sente, enxerga, cheira, sonha, mente, vive tentando preencher-se sem saber direito do que, se vincula, se aproxima, se apaixona, envelhece e um dia vai embora? Embora para onde?
Há pele, camadas de gordura, carne, órgãos, ossos, universo biológico que trabalha como uma máquina, sem que nada sinalize nenhum movimento perceptível a olho nu, nem em radiografias, ou tomografias, ninguém sabe aonde fica, mas, como negar que há uma “coisa” dentro da gente?
Quem anima o corpo da senhorinha do café? Aquele corpo adiante que um dia apodrecerá se manifesta lindamente, como uma flor que um dia vai murchar, como os pássaros que voam tão alto até que o fôlego da vida seja sugado, aquele corpo, aquela senhora, aquele menino, aquele homem, aquela mulher, o mendigo, o soldado, o amigo, o chefe, o fiscal do imposto de renda e o vizinho, aqueles corpos, aquelas “coisas”, vivendo em um fragmento do tempo, experimentando a possibilidade de serem humanos.
Nós, coisas, um dia deixaremos de ser. Nós, coisas, um dia voltaremos a ser. Coisas que nem sabem direito o que são, mas de alguma maneira se vinculam espantosamente, como se compartilhassem em si mesmo todas as coisas, todas as histórias, o mundo inteiro que cabe em algum lugar dentro da gente, na coisa que somos.
Nas coisas não há tempo, nem espaço, nem separação. As coisas são e manifestam-se nesses corpos conforme a própria percepção, ou falta dela, vivendo dentro da relatividade, da auto percepção, da dualidade, do ego, tantas coisas sobre coisas que um dia deixarão de ser o que hoje vemos; voltarão a ser o que hoje ansiamos.
Consciências que movem bonecos de carne, coisas contando suas próprias histórias até que um dia retornem à casa, a coisa aonde as coisas serão mais do que coisas. Serão o que de fato são.

Flavio Siqueira

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